segunda-feira, 3 de setembro de 2012

O momento da decisão


- O Lopez é quem controla os carregamentos… - Maria ouvia atentamente, sentada no sofá com uma chávena de chá a envolver-lhe as mãos – E eu não me consigo lembrar de onde deixei aqueles quilos! – Abanou a cabeça, martirizando-se pela incógnita que ele mesmo causou – Por isso é que a April não para de me chatear. Ela é a comunicadora dele!

Jon tragou o seu chá, à espera de mais perguntas por parte de Maria.

- Porque é que fazes isso Jon? – Um rasgo de pena trespassou na sua voz – Tu aparentas ter tanto dinheiro, porquê traficar droga?

Jon riu-se perante pergunta tão perspicaz.

- Quando entrei para o clube dos motards, não sabia que ia ser assim. Pensei que servia para partilharmos o nosso gosto pelas motas e tudo o mais! – Ao lembrar-se de alguns momentos passados no seio do clube, não conseguiu evitar um sorriso – São boas pessoas! Mas depois o Lopez… - Pensou que não havia como o descrever, não havia palavras que caracterizassem uma personalidade tão acérrima como a dele – O Lopez meteu-se em sarilhos e acabou por nos envolver a todos. Começou com pequenas quantidades, muitas vezes nós nem sequer pegávamos num único quilo… mas depois começaram a chegar os grandes carregamentos do México! Uns dias heroína, outros dias cocaína, pastilhas… Sei lá! Mas todos os dias chegam, seja lá o que for. E todos os dias temos de as transportar aos diferentes traficantes.

- E quanto custava o carregamento que tu perdeste?

- Pouco mais de seis mil dólares – Maria não conseguiu evitar a surpresa – Eram apenas cinco quilos mas é uma droga nova que agora apareceu no mercado.

Maria digeria tudo aquilo com o máximo de calma que lhe era possível. Bebeu um trago do chá preto que Jon tinha preparado de propósito para os dois, talvez por achar que era preciso algo aconchegante para acompanhar uma conversa tão pesada e secreta como aquela. Jon não só estava a contar-lhe algo muito importante acerca da sua vida como também a estava a incluir naquele secretismo. Ela sabia as repercussões que poderiam advir caso alguém soubesse; e sobretudo, se alguém soubesse que ela sabia. Aquelas informações não deviam circular fora do seu grupo de amigos. Mas de alguma maneira, Jon confiara em si aquele assunto. Sentia-se lisonjeada pela demonstração de confiança.

- Então e o que achas que ele vai fazer? Tu vais ter de lhe pagar!

- Óbvio! – Ele encolheu os ombros. Sabia que tinha de lhe pagar o dinheiro que as drogas perdidas valiam, só não sabia como – Mas agora não tenho como arranjar o dinheiro.

- Porque é que não vendes a casa?

Maria sabia que aquela proposta era ridícula. Aquela era a sua casa e embora pairassem por lá más recordações, a mais presente seria certamente os tempos felizes que lá tinha passado em família. Vende-la seria como livrar-se da memória dos seus pais. Contudo, alguma coisa tinha de ser feita; Maria não sabia até que ponto Lopez era perigoso e até onde iria para reaver o seu dinheiro. Ou Jon se apressava a arranja-lo ou seria possível que não vivesse muito mais para contar a história.

- A casa? – Jon olhou à sua volta. Não teria nunca pensado nisso. Mas agora que a proposta surgia não a considerou má de todo. Aquela casa era um poço de más lembranças e só ele sabia o que lhe custava ainda habitar nela; de certa forma, Maria tinha atenuado esse sentimento – Não era mau pensado.

- Eu tenho algum dinheiro…

- Maria… - Jon abanou a cabeça. Aceitar qualquer tipo de empréstimo estava fora de questão – Eu meti-me nesta alhada, eu mesmo a resolvo. Apenas te contei porque achei que devias saber, como vives aqui…

- Pois, por isso mesmo! Eu vivo aqui e não pago absolutamente nada. Gostava de contribuir de alguma maneira.

- Não precisas! – Jon acabou de beber o chá e colocou-o em cima da mesa de centro – Se eu colocar a casa à venda, mudas-te comigo para outro sítio?

- Como assim?

Maria também acabou o seu chá. Com um único gole, bebeu o que restava. Também ela o colocou em cima da mesa, lentamente, ganhando tempo para pensar no que faria perante a hipótese de Jon se mudar.

- Não sei… - Ela encolheu os ombros – Eu acho que a minha estadia aqui vai acabar mais depressa do que o previsto – Agarrou num elástico que tinha ao pulso e enrolou nele o seu cabelo, fazendo um rabo-de-cavalo – Tenho de voltar!

Jon ia perguntar-lhe o porquê de ela estar ali, considerando que aquele era o momento certo. Mas Maria rapidamente o fez mudar de ideias: agarrou na revista mais próxima e começou a folheá-la, dando um claro sinal de que não queria partilhar com ele a sua vida. Mas Jon não estava preocupado com isso, ele era paciente e iria esperar até Maria estar preparada para partilhar isso com ele.
Naquele instante, o seu telemóvel tocou. Um curto mas alto bip fez-se ouvir e através desse som Jon percebeu que se tratava de uma mensagem de texto. No ecrã podia ler-se: “Uma mensagem nova de April Summers”. Levantou os olhos do ecrã para mirar Maria e percebeu que ela estava entretida com o que lia – ou fingia estar – e abriu a mensagem, receoso do que poderia encontrar.

“De: April
Assunto: Cowboy, o Lopez quer ver-te amanhã à noite, no Ritz Casino, em Houston. Traz a tua namoradinha, o Lopez descobriu coisas acerca dela que vais gostar de saber. Às 21h00, não faltes! Xoxo.”

Jon engoliu em seco. Leu e voltou a reler a mensagem. Na sua cabeça, a frase “Traz a tua namoradinha, o Lopez descobriu coisas acerca dela que vais gostar de saber” ecoava e dava voltas e mais voltas, deixando-o ainda com mais medo do que Lopez pudesse fazer. Claramente, ele não estava ali a brincar. Mas como poderia ele saber algo acerca de Maria? Ela raramente saía de casa. E quando saía nunca ia para os lados do clube – aliás, era impossível que ela descobrisse aqueles caminhos. Aquilo para ele não passava de um negócio por isso era óbvio que ele já tivesse posto mãos à obra. Deveria leva-la? Se o fizesse, arriscava-se a que algo lhe acontecesse. Se não, arriscar-se-ia a ver a sua vida por um fio. Pensou não uma, nem duas vezes e depois de recapitular as hipóteses na sua cabeça, decidiu que ia leva-la. Mas será que ela deveria saber o verdadeiro motivo da sua ida ao casino? Nem foi preciso pensar no assunto. Maria não podia saber.


Trinta e um de março de dois mil e onze

Maria tinha acordado bem cedo naquela manhã. Normalmente, conseguia dormir mais um pouco depois dos raios de sol trespassarem as cortinas da grande sala onde ambos dormiam – em sofás separados – mas naquele dia, não conseguiu dormir nem mais uns minutos. Acordou com o estranho pressentimento de que algo não ia correr bem. Mas poderia não passar disso, de um pressentimento. Foi até à casa de banho onde tomou um duche rápido e vestiu uns calções de fato treino e uma camisola branca over size, largas e descontraídas, assim como ela gostava.
Jon dormia profundamente no seu sofá: tinha vestido apenas uns boxers, dando uma perfeita visão do seu corpo escultural e definido; Maria considerou que ele deveria ser, sem dúvida, um homem de trabalho. Aproveitando o facto de a casa estar tranquila, sentou-se na mesa de jantar, depois de colocar à sua frente uma folha branca a4 e uma caneta. Ia escrever para Anna. Ia ser a segunda carta de que lhe enviava desde que tinha chegado Galveston. Na carta anterior, apenas lhe tinha dito que se encontrava de boa saúde e a residir numa pensão, para além, claro, dos sucessivos pedidos de desculpa. Anna não sabia onde ela estava mas devia calcular pois ela sabia o paradeiro dos seus verdadeiros pais, apesar de nunca lhe ter dito. Maria preferiu fazer tudo às escondidas quando começou a investigar esse assunto. Certo dia, enquanto trabalhava na receção do orfanato onde anos antes viveu, aproveitou o facto de estar a trabalhar sozinha para entrar nos arquivos, lugar interdito a trabalhadores sendo que a única pessoa que podia lá entrar era a diretora do sítio. Vasculhou todos os casos que lhe apareceram à frente, até encontrar o seu e se deparar com o nome dos seus pais biológicos, que a abandonaram com meses de vida. Olivia e Benjamin Portman. Pareciam nomes tão simples e bonitos mas que lhe pesavam tanto na consciência. Era uma dor nova para ela mas uma dor que lhe dava algum alento. Junto aos nomes aparecia também a sua morada – Allexington Street, 964, Galveston/Texas. A primeira coisa que ela pensou foi que não era muito longe do sítio onde se encontrava; com um pouco das capacidades que aprendeu nos cinco anos de escuteiros conseguiria perfeitamente aguentar a viagem. Só depois lhe ocorreu que passados dezoito anos, os pais poderiam já não viver no mesmo local. Lembrava-se de se consciencializar que era um risco, sem dúvida, mas um risco que ela estava disposta a correr se isso significasse encontrar-se com os seus progenitores. E seria, certamente, uma aventura para a vida, uma aventura que ela poderia partilhar com os seus filhos e netos e orgulhar-se por não ter desistido de encontrar aqueles que lhe deram vida.
“E aqui estou eu!”, pensou, enquanto escrevia com a sua letra de primária, as primeiras palavras no papel.
Jon levantou-se uns minutos depois, provavelmente também incomodado com os primeiros raios de luz e assim que ouviu os seus pés a tocarem no chão, Maria limpou as lágrimas à palma da sua mão, lágrimas essas que já tinham manchado praticamente todo o papel onde escrevia lentamente.

- Bom dia! – Jon esfregou os olhos e dirigiu-se até à casa de banho em tronco nu, proporcionando a Maria o que ela considerava ser uma visão do paraíso, impossível de não se olhar – Já tomaste o pequeno-almoço? – Entrou na casa de banho e fechou a porta.

- Ainda não! – Respondeu Maria, um pouco mais alto para que Jon a pudesse ouvir do outro lado – Tenho umas coisas para ir fazer à rua e vou comprar pão. Estou só a acabar umas coisas…

- Levantaste-te muito cedo! – Constatou ele, também num tom de voz mais alto.

- É…

Parca em palavras para não adiantar mais nada sobre o vazio que dia após dia lhe preenchia a alma, ela continuou a escrever, procurando encontrar naquelas palavras alguma motivação que a fizesse avançar e a apresentar-se aos verdadeiros pais. Só assim poderia sentir-se em paz e voltar para junto da mulher que nunca a abandonou e que sempre acreditou nela.
Jon saiu da casa de banho já devidamente vestido, emanando um cheiro contagiante. Passou por ela mas não parou pois sabia que ela não gostava de ser incomodada quando escrevia o que quer que fosse que ela passava para o papel. Aquelas cartas intrigavam-no e, embora ele começasse a ficar impaciente, dar-lhe-ia todo o tempo que ela precisasse para lhe contar.

- Estava a pensar… - Esperou que ela olhasse para ele para poder prosseguir – Hoje à noite podíamos ir ao casino… - Debruçou-se sobre a bancada da cozinha e cravou os seus olhos azuis expectantes nos dela, esperando ansiosamente por uma resposta positiva da sua parte – Não gostas de casinos?

- Hmmm – Maria ajeitou-se na cadeira – Nunca fui a nenhum.

- E gostavas de ir?

A resposta afirmativa de Maria surpreendeu-o. Não era como se ela estivesse entusiasmada mas já era o quarto dia que ela passava lá em casa e era bom começarem a ter algo que fazer para além de assistir televisão, comer e dormir. Isto era provavelmente o que ela pensava; já Jon desejava nunca ter de a convidar. Pelo menos, nunca naquelas circunstâncias.

- Ok, jantamos qualquer coisa aqui… - Jon ligou a máquina do café – E depois saímos por volta das 20h30, o que achas? – Maria anuiu – Tenho lá em cima algumas roupas da minha mãe, no terceiro quarto do corredor, dentro do armário. Estou a dizer-te isto porque não deixam entrar de ténis, nem camisa ou calças…

Maria franziu o sobrolho, desagradada com a ideia de ter de se produzir. Mas encarava aquilo como um encontro. Num encontro normal ter-se-ia vestido sem cerimónias mas tratava-se de um encontro com Jon, que parecia recheado de boas surpresas.

- Não, deixa estar! – Dobrou o papel em dois, decidida a termina-lo mais tarde – Depois de almoço vou até ao shopping mais próximo e compro algumas roupas. Não trouxe quase nada, tinha de ser prática…


Assim como tinha dito, depois de almoço, Maria foi até ao shopping de Galveston fazer algumas compras. Tinha pensado muito durante aquela manhã e estava decidida a fazer algumas mudanças; afinal, estava em maré de mudanças! Durante uns tempos tinha-se mantido fiel ao seu estilo descontraído e confortável, às suas botas pretas pelas canelas, aos seus calções e calças de ganga e às suas t-shirts largas mas agora achava que seria saudável juntar algumas coisas ao seu guarda-roupa mais seletivo. Além disso, sentia necessidade de chamar a atenção de Jon. Achava-o interessante, um poço de bondade e um dos rapazes mais bonitos que já vira, apesar da sua baixa autoestima e confiança não deixarem transparecer isso ainda mais. Não o via como um amigo, as coisas entre eles ainda eram demasiado tensas para tal mas Maria acreditava que não é preciso uma amizade para se despoletar algo mais. A caminhar pelos corredores apinhados de pessoas e ao pensar nisso, Maria abanou a cabeça, inquietando-se com os seus pensamentos ‘impróprios’.
Depois de uma hora e meia entrando e saindo nas mais variadas lojas, Maria contava com uma dúzia de sacos, muitos deles com mais do que uma peça, encontrando-se entre as quais vestuário que ela nunca tinha pensado comprar: vestidos casuais e dois mais elaborados para vestir para o casino, saias dos mais variados tipos, sapatos de salto, assim como ténis desde a marca Vans até à Adidas, sabrinas, chinelas, casacos que saiam do padrão a que estava acostumada, malas, algumas camisas e t-shirts (umas que seguiam a sua onda descontraída e calma, outras mais elegantes e chiques), malas, relógios, calções de cintura subida e mais calças de ganga e alguns acessórios que ela duvidava vir a vestir algum dia. Maria não sabia quanto dinheiro tinha gasto com aquelas compras mas não estava preocupada de todo. Para além do dinheiro que guardou dos dois anos que trabalhou no orfanato, Maria tinha também uma boa quantia guardada que arremessou de uma lotaria popular. Para já, dinheiro não era algo que lhe fizesse falta.
Quando chegou a casa, Jon não estava mas tinha deixado uma carta para ela em cima da mesa do hall.

“Maria,
Como já sabes, fui fazer o meu trabalho. Volto às 20h.
Podes usar as roupas da minha mãe se ainda estiveres interessada. O ferro de engomar está na dispensa.
Xoxo. Jon.”

Maria fez o jantar mais cedo, para ter tempo de jantar e de se despachar antes que Jon chegasse a casa. Queria estar pronta já quando ele chegasse. Tomou um banho de imersão quente, que a ajudou a relaxar de depois passou pelo corpo um creme hidratante – algo que era raro fazer. Penteou o seu longo cabelo que lhe dava até depois do meio das costas e deixou-o secar ao natural, para que ficasse com as formas perfeitas, como ela tanto gostava. Passou apenas um rímel para enaltecer ainda mais as suas longas e volumosas pestanas mas nenhum outro tipo de maquilhagem cruzou a sua pele. Maquilhar-se era algo que ela jamais se imaginava a fazer. Vestiu um soutien preto e umas cuecas brasileiras a fazer conjunto e passou o vestido a ferro, enquanto deixava o seu corpo absorver o creme. Na verdade, Maria não se podia queixar em relação aos seus genes: era magra (media 1,64m e pesava quarenta e oito quilos), as suas pernas eram finas e a sua barriga lisa; o melhor de tudo era que ela nunca teve de se esforçar para tal. Quando achou que nenhum vinco manchava o seu vestido preto, Maria vestiu-o em frente ao espelho, observando-se durante uns instantes. O vestido dava-lhe por cima do joelho e a sua cintura era acentuada, assim como o seu peito devido ao imenso decote; não que ela tivesse peito porque não o tinha mas a sua experiência como leitora assídua de revistas de moda dizia-lhe que aquele tipo de decote lhe ia ficar bem. Deixou cair o seu cabelo meio seco para a frente, cabelo esse que lhe cobriu o peito e ficou satisfeita com o resultado. Ia para um casino e, embora não soubesse o que isso implicaria, queria causar boa impressão.

Jon chegou não muito tempo depois. Trazia o seu habitual casaco de cabedal e o seu cabelo vinha despenteado, talvez por causa do vento. Maria queria parecer o mais natural possível mas isso revelou-se uma tarefa difícil; estava expectante em relação à sua opinião. Assim que Jon a encarou, tão elegante e esbelta a apoiar-se naqueles saltos altos que ele nunca imaginaria nela, sentiu um fio de calor percorrer-lhe o corpo. Maria estava deslumbrante! E esse adjetivo não parava de circular na sua cabeça. Por uns instantes, sentiu-se sem jeito enquanto a olhava mas conseguiu recompor-se e começou a elogia-la.

- Bem… - Coçou a cabeça – Estás… linda!

Maria sorriu desajeitada. Não estava habituada a ouvir elogios e não sabia que eles sabiam tão bem.

- Está aqui o teu jantar… - Ajeitou o prato com o jantar de Jon em cima da mesa – Eu já comi!

Maria procurava andar sem chamar a atenção mas a pouca experiência que tinha com sapatos de salto tornava a situação um tanto ou quanto divertida. Jon sentou-se à mesa, escondendo por entre os lábios um sorriso divertido mas, ao mesmo tempo, derretido.


Chegaram ao casino já passava da hora marcada por Lopez.
Jon tinha vestido umas calças de ganga e uma camisa branca, conjugado com uns sapatos de cerimónia que ele tinha lá por casa. Aquele toque mais requintado fez Maria suspirar; não parava de pensar no quão charmoso ele estava e no quão bem o seu perfume cheirava. Jon, por sua vez, sentia-se agoniado. Tentaria qualquer outra coisa para não ter de inclui-la nos esquemas do seu chefe. Mas também tinha plena consciência que qualquer tentativa poderia correr-lhe extremamente mal. Deixá-lo-ia dizer tudo o que descobrira acerca da sua misteriosa hóspede e depois tentaria arranjar uma moeda de troca para não envolver Maria no assunto. Olhava para ela e tudo lhe parecia tão inocente e ingénuo que ele jamais apostaria que ela conseguisse sobreviver naquele mundo.
Maria passou o braço à volta do de Jon, à medida que entravam no casino. Aquele cenário imponente, requintado e luxuoso intimidava-a. Sentia-se tão pequena no meio de toda aquela imensidão que um pequeno mal-estar começou a tomar conta de si. No meio de todas aquelas máquinas e de todos aqueles viciados no jogo, que alguns pareciam lá estar talvez há dias seguidos, Jon encontrou Lopez, rodeado dos seus capangas e com April por perto. Felizmente, Maria não o viu mas Lopez já tinha dado por ele. Acenou-lhe levemente, lançando-lhe um sorriso irónico e Jon foi obrigado a arranjar uma desculpa para que se pudesse ausentar sem Maria desconfiar.

- Não queres jogar a nada?

Maria abanou a cabeça. As pessoas ali dentro não lhe inspiravam confiança e não se sentiria bem sozinha.

- Ok mas eu tenho mesmo de ir à casa de banho! – “A típica desculpa da casa de banho!”, pensou, desejando que ela não percebesse – Encontro-te aqui?

- Sim, sim, vou jogar a qualquer coisa nesta zona, então…

Jon afastou-se, em direção a Lopez mas só se adiantou mais quando achou que aquele ângulo era imperceptível para Maria.
Lopez estava sentado numa mesa de poker, com dois seguranças a circunda-lo. A sua figura era a típica de homem da noite com um toque de motoqueiro: camisa preta, blusão de cabedal, calças de fato e sapatos de cerimónia devidamente engraxados. Fumava um charuto enquanto o fumo que emanava desaparecia no seu cabelo, repuxado para trás tal era a quantidade de gel.

- Oh amigo Jon!

Perante aquela falsa alegria do seu superior, Jon quase não conseguiu evitar o seu desagrado. Não proferiu uma única palavra e Lopez continuou o seu discurso, sempre com um sorriso irritante nos lábios.

- Vejo que a tua menina está mais… - Olhou para April, à espera que a palavra certa lhe aparecesse – Menina!

- Deixa a Maria fora disto!

O aviso não lhe saiu tão alto e ameaçador como ele pretendia; não queria dar nas vistas, não queria mostrar-se intimidado mas o receio que lhe percorria a espinha falou mais alto. Lopez era, sem dúvida, intimidante. Não havia como não ter medo dele e das suas artimanhas.

- Pois bem, Jonny Boy – Jon odiava quando ele o tratava daquela forma mas não se manifestou – Aqui a April e eu descobrimos umas coisas interessantes acerca da tua hóspede vinda do Louisiana – April fitou Jon, esperando que ele a encarasse mas ele não o fez. Estava enojado daquela rapariga, alguém em quem ele já tinha confiado – A verdade meu amigo, é que ela nos pode ser extremamente valiosa!

- O que queres dizer com isso?

Um sorriso de contentamento rasgou o rosto de Lopez.

- Quero dizer… - Cartas rodavam nas suas mãos como se de uma brincadeira se tratasse – Quero dizer que a tua amiguinha é filha do Portman! O meu ex fornecedor! – A sua mão bateu na mesa de poker, fazendo Jon estremecer – Aquele sacana… - Murmurou com um rasgo de fúria a trespassar-lhe a voz mas a mão de April pousou no seu ombro, acalmando-o – Ele deve-me mais de um milhão de dólares, percebes? Fazes ideia do que são um milhão de dólares? A tua sorte miúdo foi que o teu carregamento não valia nem metade disso… Mas esse dinheiro não deixava de ser importante – Reconsiderou, visivelmente mais calmo – Mas sobre esse assunto falaremos noutra altura, agora o que quero que tu faças é manter a miúda em Galveston mas mais importante – Sublinhou as palavras “mais importante” – é fazeres com que ela decida finalmente apresentar-se aos pais.

- Já que ela anda ali a rondar e nunca é capaz de tomar iniciativa… - April interveio, revirando os olhos ao fazer notar a fraqueza de Maria.

- Como é que vocês sabem tudo isso?

- Tens de dizer-lhe para ela não confiar tanto nas pessoas que encontra na rua! – Lopez piscou-lhe o olho, deixando-o furioso por dentro.

- E se eu não quiser fazer isso?

Jon não queria pô-lo à prova pois sabia bem do que ele era capaz e também sabia que ele usaria Maria como isco para chegar até Portman. Fazer parte desse esquema condená-lo-ia. Mas que outra alternativa teria? Lopez sabia tudo sobre a sua vida e qualquer tentativa que fizesse para se rebelar poderia ser o passaporte direto para o caixão. No entanto, não sabia se seria capaz de fazer isso com Maria, tão inocente, tão ingénua…

- Acho que não te resta alternativa. – Proferiu Lopez, encerrando por ali a conversação. 



Aqui vos deixo mais um capítulo! Quero pedir desculpa pela demora mas estive de férias e não consegui postar mais cedo! Quero também agradecer o cada vez maior número de visualizações, muito obrigado a todos!

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Descobertas


Trinta de março de dois mil e onze


Maria já estava há dois dias em casa de Jon.
Durante essas quarenta e oito horas descobrira coisas bastante interessantes acerca dele:

. Nunca subia as escadas para fazer o que quer fosse no primeiro andar;
. Gostava de assistir a corridas de motas e a jogos de futebol que davam praticamente todos os dias à mesma hora;
. Saía de casa entre as dezoito e as vinte horas sem dar qualquer explicação;
. Tem uma empregada doméstica amiga da família que lhe limpa a casa uma vez por semana sem levar nada em troca;
. É voluntário num canil nos subúrbios da cidade;

Durante esses dois dias, Maria também descobriu algumas coisas acerca dos seus pais biológicos, destacando-se o facto de os dois já não estarem a viver juntos e de ambos já terem arranjado um parceiro. Muitas vezes dava por si a vaguear em frente à casa que lhe tinham indicado como sendo a casa de casados deles mas faltava-lhe sempre a coragem para tomar iniciativa. Tudo estava a ser tão fácil que ela temia a derradeira conversa, o verdadeiro motivo por que ela tinha fugido da sua vida ao lado de Anna, em Campdown.
Maria estava agora em casa, sentada no seu sofá-cama, lendo umas revistas antigas que Jon tinha dentro da sua caixa disposta em cima da mesa central da sala. A sua leitura atenta e dedicada foi interrompida pelo toque da campainha; Jon tinha-se esquecido das chaves que estavam em cima da mesa do hall por isso era provável que fosse ele. Levantou-se cuidadosamente, derrapando com as suas meias pelo chão e abriu a porta, ficando embasbacada com a presença que viu à sua frente: uma rapariga alta, loira, de cabelos lisos compridos, que ostentava umas calças pretas de cabedal, um colete a combinar e uma camisola branca justa ao corpo, delineando as suas curvas bem definidas. O seu rosto era oval e os seus olhos eram incrivelmente parecidos com os seus, amendoados e rasgados. O que os distinguia era a cor: a rapariga loira tinha os olhos de um azul claro extremamente intenso, contrastantes com os seus, castanhos-escuros.

- Posso ajuda-la?

A rapariga olhou-a de alto a baixo, com desdém. Maria puxou as suas calças de fato treino largas para cima, sentindo-se incomodada com o olhar inquiridor da loira.

- Olá! – A rapariga contornou-a, entrando em casa com um à vontade que deixou Maria de boca aberta – O Jon está?

- Não... – Fechou a porta, voltando para o seu sofá – Ele não está.

- Hmmm – A rapariga loira anuiu, vagueando pela casa à procura de algum sinal da presença de Jon – E tu, quem és? A nova aquisição?

“O que é que esta quer?”.
Maria cruzou as pernas, assumindo uma postura mais séria e sobretudo, uma postura de alguém afetado.

- O meu nome é Maria... – Esboçou um sorriso irónico – E sou amiga do Jon.

- Amiga? – Ela riu-se, com um tom ainda mais irónico do que Maria tinha conseguido há minutos atrás – Querida, deves pensar que me enganas! Assim vestida, deitada no sofá dos serviços – Proferiu “sofá dos serviços” com um sorriso de saudade estampado na cara – E queres que eu acredite que és só amiga dele?

Maria olhou para o sofá, indagando o que seria que já se tinha passado ali.

- Pois mas penso que não te devo quaisquer satisfações. Quando o Jon chegar eu digo que passaste por cá.

- Não, sabes que mais? – A rapariga contornou o sofá e sentou-se no sofá onde Jon costumava estar – Eu espero por ele.

Maria arregalou os olhos perante a postura daquela estranha rapariga que ela nunca tinha visto. Durante uns segundos ficou a olha-la mas ela não pareceu ficar incomodada; mexia e remexia nas unhas, de pernas cruzadas. Agia como se a casa também fosse dela.
Jon acabou por chegar cerca de quinze minutos depois. Chegou andrajosamente vestido, deixando Maria a sentir-se bem melhor ao perceber que as más figuras não eram exclusivas dela. A primeira pessoa que ele avistou foi Maria; esboçou-lhe um sorriso que atravessou a sua face, aparentando estar contente por a ver. Contudo, ele acabou por se desvanecer quando a cabeleira loira deu lugar a um rosto perfeitamente esculpido e, acima de tudo, bonito.

- April? – Resmungou algo para si, inaudível para ambas – Outra vez?

- Eih Jon...

Ela contornou o sofá e foi até ele, ficando apenas a escassos centímetros da sua boca. Maria sabia que aquilo era apenas para a provocar e ria-se por dentro por não estar a resultar. Ela não gostava de Jon, não daquela maneira. Pelo menos, não para já.

- Afasta-te lá! – Ele parou as suas investidas colocando-lhe a mão no ombro em sinal de stop – O que é que ´tás aqui a fazer?

- Trago um recado do Lopez...

Jon caminhou para o sofá e ela seguiu-o. A forma provocatória como se exibia irritava profundamente Maria. As suas calças de cabedal justas ao corpo delineavam as suas formas esculpidas e trabalhadas, certamente. Por momentos, sentiu inveja daquele corpo. Não porque ela fosse gorda, pelo contrário, mas assim como tantas outras pessoas, Maria tinha tendência a crer que ‘a galinha da vizinha é sempre melhor do que a minha’.

- Podemos falar noutra altura?

Ele sentou-se calmamente no sofá, agarrando o comando da televisão disposto a liga-la. April impediu que essa ligação se efetuasse. Tirou-lhe o comando da mão, furiosa, e mandou-o para longe, estilhaçando-o em pedaços uns bons metros do lado contrário da sala.
Maria estremeceu. A rapariga estava furiosa, isso era percetível. Só não entendia porquê. E essa confusão na sua cabeça fez com que ela sentisse um medo irracional aflorar-lhe à pele. Jon estava, sem dúvida, metido em algum sarilho.

- Bolas Jon, não estou a brincar! – A sua voz começou a ficar estridente, exatamente a mesma voz que Maria recordava de há dois dias atrás – Ele quer a merda do dinheiro! Não sei como vais fazer, nem me interessa! Obriga a tua namoradinha – Proferiu ‘namoradinha’ com escárnio – Obriga-a a ir ganhar para a rua. Não me interessa! – A última frase foi proferida num tom de voz tão alto que Maria julgou que os tímpanos iam rebentar – Se não arranjares o dinheiro nos próximos dias és um homem morto.
Este ultimato, proferido sem dó nem piedade, foram a gota de água para aquilo que Maria estava disposta a ouvir. Não sabia em que tipo de negócios os dois estavam metidos mas antes que ela continuasse a ameaça-lo sem que ele fizesse nada para a deter, Maria levantou-se e foi até à porta, escancarando-a e apontando para a rua.

- Eu gostava de ter um pouco de paz, por favor!

Ao aperceber-se de que aquelas palavras eram dirigidas a si, April seguiu passada até ao sítio onde Maria se encontrava, com um sorriso de desafio estampado no rosto, caminhando lentamente, de olhos cravados na presa, como se de uma selvajaria se tratasse. Um calafrio percorreu a espinha de Maria; estava amedrontada de tal forma que quando April se aproximou ela jurou que as forças lhe estavam a faltar. Respirou fundo subtilmente, preparando-se para se sujeitar ao que quer que fosse que ela lhe fosse fazer. A mão da rapariga agarrou uma mexa do seu cabelo, primeiro acariciando-o, depois puxando-o assim que começou a falar.

- Pirralha! – A sua boca semicerrou-se quando ela proferiu a seguinte ameaça – É bom que te afastes dele, se não queres que eu trate de ti!

Maria franziu o sobrolho, surpreendida com a falta de escrúpulos que April estava a mostrar. A mão loira deslizou suavemente pelos seus longos cabelos, até não restar um único fiozinho e antes de sair ainda olhou para Jon, deixando-lhe um olhar de ultimato. Assim que os seus pés pisaram os primeiros centímetros do lado de fora da casa, Maria fechou a porta, não se importando que aquele gesto fosse ferir suscetibilidades.  O seu olhar zangado e ferido pousou em Jon, que ainda digeria o que tinha acabado de acontecer.

- Como é que tu podes deixar que ela te fale assim? Pareces uma marionete nas mãos dela... – Não conseguia deixar de exibir toda a sua incredulidade – Ela chega aqui como se a casa fosse dela...

- Eu e ela temos um passado!

Ele levantou-se do sofá de um salto, assumindo uma postura firme e hirta a escassos metros de Maria. Provavelmente tinha estado no canil nesse dia. Maria deduzia isso pelas vestimentas que ele envergava, sujas, largas e esfarrapadas. No entanto, pensou para si, ‘nem isso era capaz de invalidar por um segundo a sua beleza natural´.

- Ok, mas isso não me interessa – Maria tentou escapar à constrangedora conversa sobre ex. relacionamentos, da qual ela não tinha qualquer testemunho a dar – E quem é o Lopez, já agora? Já é a segunda vez que oiço falar nele!

- Segunda?

Ups.
Maria rebobinou o que aconteceu dois dias antes quando April tinha lá estado e ela se tinha refugiado num dos assustadores quartos do andar de cima. Jon também o fez quando se apercebeu da peça que lhe faltava; só que ele, claro, nunca teria a mesma perspetiva.

- Então tu ouviste a nossa conversa toda naquele dia?

- Como poderia evitar? – Ela encolheu os ombros, ao perceber que não teria como se justificar de maneira fácil. O melhor mesmo seria desviar o mais possível aquele assunto – Ouve, eu agradeço mesmo a tua hospitalidade mas se andas metido em negócios perigosos então é melhor eu sair daqui, porque eu realmente – Sublinhou ‘realmente’ – não quero estar metida nesse tipo de sarilhos.

- Eu ando metido em negócios perigosos, se é isso que queres saber!

Maria sentiu um aperto súbito no peito; foi como se o seu coração fosse um ioiô e tivesse caído, raspado no chão e voltado ao sítio, danificado. Tinha confiado nele praticamente com a sua vida; morava em sua casa e usufruía dela como se a mesma lhe pertencesse; acreditava piamente no que ele dizia e a cada dia que passava nutria mais carinho por aquele rapaz misterioso que há poucos dias se tinha disponibilizado a encaminha-la na maior aventura da sua vida.

- Não acredito nisto!

Abanou a cabeça múltiplas vezes como se esse gesto fosse capaz de apagar a sua mágoa. Não era uma pessoa particularmente orgulhosa mas era, sem dúvida, alguém que se magoava com muita facilidade.

- Eu não te quero meter nisto, como é óbvio...

Jon interrompeu a sua fala quando Maria abandonou a sala e entrou na casa de banho. A sua mochila estava pendurada atrás da porta e todos os seus pertences estavam lá dentro. Pelo menos, o mais importante estava: a sua carteira com todo o seu dinheiro. Vestiu umas calças de ganga estilo slim à pressa e calçou as suas botas pelas canelas que ela raramente dispensava. Enquanto fazia isso, não parava de resmungar, não parava de desbobinar coisas que só ela queria ouvir, acusações e arrependimentos que ela pretendia guardar para ela mas que ameaçavam irromper a qualquer segundo e que acabaram por sair naquele mesmo instante. No seu interior, um turbilhão de emoções misturava-se: arrependimento, ressentimento, agradecimento, saudade, fúria, incredulidade, tristeza, solidão... Tudo isso estava misturado, tudo isso estava demasiado aceso na sua cabeça para que ela pudesse controlar-se naquele instante. Agachou-se uns instantes sob o lavatório e olhou-se ao espelho, observando a sua cara vermelha, inchada mas ainda assim bonita. Não que ela o achasse, mas Maria era na realidade uma rapariga extremamente bonita, não só por fora como também por dentro. Todos nós criamos a nossa beleza com as nossas atitudes, o nosso comportamento e as nossas ações. Com base nisso, Maria não podia ser mais bonita.

- Estupida, estupida...

As lágrimas escorriam-lhe pesarosas pelo rosto, carregadas e furiosas. Talvez o choro compulsivo fosse um dos seus piores defeitos: chorava com relativa frequência e quando o fazia, era incapaz de parar com facilidade.
Jon entrou nesse instante. Nem precisou de bater para saber que ela estava a chorar. Estava com ela há poucos dias mas havia coisas que ele já tinha percebido acerca dela:

. Chorava com muita facilidade – a primeira vez que a viu chorar foi no segundo dia, quando ela levou uma carta ao correio;
. Gostava de ler revistas de moda e parecia entender do assunto;
. Evitava ver programas relacionados com a temática da família;
. Gostava de vaguear pelas ruas e costumava parar muitas vezes em frente à casa dos Portman, que se tinham separado à relativamente pouco tempo. No entanto, nunca lá entrava;

Jon desconfiava que ela fosse órfã. Ou então que os pais a tinham abandonado. Não saberia explicar de que outra maneira ela poderia estar ali sem ser incomodada com chamadas e mensagens e por não ter receio que alguém pudesse andar à sua procura. Se ela tivesse pais, eles certamente que já tinham mobilizado esforços à sua procura. E também não sabia explicar por que outra razão ela tanto chorava, muitas vezes durante a noite.
Assim que ele entrou, ela baixou a cabeça mas não proferiu uma única reclamação. Ele acarinhou os seus ombros desnudos procurando dar-lhe algum conforto mas ela não parava de chorar. E agora a juntar-se ao choro vieram também os soluços. Jon sentiu pena dela naquele instante; pena do seu desespero e pena por não conseguir ajuda-la pois nada sabia sobre a sua vida. Rodou-a para si e acolheu-a nos seus braços, dando-lhe pequenas festas no cabelo sedoso e cheiroso. Encostou o seu queixo ao lado da testa quente da rapariga e ouviu-a chorar no seu colo durante uns instantes. Maria não ofereceu qualquer resistência àquele gesto de carinho. Inclusive, por momentos, esqueceu-se de todas as complicações com que se deparava naquele instante. Esqueceu que poderia estar a ser consolada por um criminoso, esqueceu que tinha deixado para trás a única pessoa que alguma vez se importou com ela, esqueceu que estava a poucos metros da casa de casados dos seus verdadeiros pais, que nunca tinham nada por ela. Esquecimento... o escape momentâneo da realidade da vida.
Jon acabou por larga-la longos segundos depois. Quando conseguiu ver a sua cara por instantes, reparou que as lágrimas começavam a secar e que apenas se notava que ela tinha estado a chorar pelo inchaço envolvente e pelas suas longas pestanas molhadas. Perguntava-se como poderia ela ser tão bonita? Tão interessante? Queria dirigir-lhe algumas palavras de aconchego, queria saber o que se passava com ela e avaliar todas as hipóteses que conseguisse arranjar para a ajudar. Contudo, naquele momento, nada lhe saía. Estavam num cubículo com paredes de azulejos cor-de-rosa, praticamente colados um ao outro e ela estava tão quente... Sentiu um desejo enorme naquele instante, algo que ele não conseguia explicar. Mas pior de tudo, algo que ele não conseguia controlar. Olhava para ela, mas ela não parecia querer manter contato visual. Mexia no cabelo, esfregava os olhos, prendia o olhar em todos os cantos daquele quadrado menos nele. O seu braço, num gesto involuntário, procurou alojar-se algures entre o seu ombro e o seu pescoço mas antes que ele conseguisse fazer isso, Maria voltou a virar-se para o lavatório e, abrindo a torneira, encheu as mãos com água e lavou a cara, enxaguando os restos lacrimais que ainda restavam. Jon olhou-se ao espelho durante aquele período de tempo, com desalento. Apressou-se a sair da casa de banho, procurando evitar qualquer momento constrangedor. Rezava a pés juntos para que aquele comportamento não tivesse sido demasiado evidente. E preocupava-se agora em como faria para esclarecer as coisas. Maria estava lá há pouco tempo, mas aquele tempo tinha bastado para ele perceber que era exatamente aquela companhia que ele queria.  




Quero agradecer a todos os leitores da minha história e também às duas pessoas que até à data comentaram os meus capítulos, deram-me imensa força para continuar. Muito obrigada!

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

A chegada


Percorriam a estrada de acesso a Beaumont há cerca de um quarto de hora quando a mota começou a soluçar. Foi um soluçar suave mas mesmo assim percetível. Maria não disse nada, temendo estar a ser precipitada mas percebeu ter motivos para tal quando John começou a praguejar. Murmurou para si alguns impropérios que Maria decidiu ignorar e uns metros à frente encostou numa entrada em terra batida em plena autoestrada.

- Passa-se alguma coisa?

Maria levantou-se automaticamente, sem sequer esperar por um sinal. Já sabia que algo não estava bem. Jon não lhe respondeu; debruçou-se sobre o motor e ali ficou durante uns segundos, compenetrado a olhar para todo aquele emaranhado de fios, pensando em como poderia resolver a situação.

- Não sei… - Disse, passado uns minutos – Algum fusível que rebentou… Mas não tenho a certeza.

A pensão de WestVille já era visível do sítio onde se encontravam: um edifício branco sublinhado a amarelo, de forma retangular, coberto de janelas. Jon alternou o olhar entre o motor e a pensão, indicando a Maria que o problema que afetou a mota é sério o suficiente para ser preciso reforços. Reforços esses que só poderiam chegar com os primeiros raios da manhã.

- De noite não vou conseguir ver nada disto! – Afastou-se do motor, dando-se por derrotado – Só amanhã de manhã é que vou poder ver o que se passa.

- Então o que propões? – Apesar de saber qual a resposta, Maria só queria confirmar o seu receio.

- Vamos ter de passar a noite na pensão…

Ele encolheu os ombros, aguardando uma reação da parte dela.

- Ok… - Ela riu-se, imaginando um cenário na sua mente – Já estou a ver o que é isto; trazes-me para aqui, armas esta armadilha toda tentando fazer-me crer de que tudo não passa de um contratempo e depois arrastas-me para a pensão…

Jon não conseguiu conter o riso. Tudo nela e sobretudo na sua imaginação era demasiado divertido para que ele não se risse.

- Andas a ver muitos filmes de terror, suponho… - Há medida que falava, trancava a sua mota que iria ficar ali ao relento durante toda a noite sujeita a ser saqueada – É um risco que tens de correr. Como é óbvio não te peço que confies em mim mas não há outro sítio onde possas ficar. Se preferires quartos em andares diferentes por mim tudo bem!

Maria iniciou o passo, arrastando as suas botas pelo caminho de terra batida. Trilhos assim já lhe eram familiares.

- É normal, não? – Jon juntou-se a ela, segurando nas mãos o capacete e uma pequena carteira – É preciso muito mais que oferecer boleias para que estranhos mereçam a minha confiança.

- Pois, eu percebo-te… Eu faria exatamente a mesma coisa.

- Esses trajes… - Maria olhou-o de alto a baixo, fazendo clara referência à sua vestimenta – Fazes parte de algum clube de motards ou assim?

- Talvez já estejas a querer saber demais… - Ele sorriu timidamente mostrando não se sentir à vontade para falar sobre o assunto – Mas sim, tenho um género de um clube mas não é uma coisa que goste muito de falar.

- E onde estão os teus amigos?

A curiosidade de Maria em relação àquele rapaz estranho evidenciava-se cada vez mais e movia-se sobretudo pelo facto de ele estar disposto a ajuda-la sem a conhecer de lugar algum; isso revelava o seu carácter, que Maria acreditava que se construía não por aquilo de que somos feitos mas sim pelas ações que desenvolvemos ao longo da nossa vida.

- Algures… Nós não temos por hábito saber os passos uns dos outros, a toda a hora…

- E são todos da tua idade? – Perguntou Maria, ignorando o facto de Jon não querer falar sobre o assunto.

Ele estancou no caminho repentinamente, fazendo derrapar as botas pretas no terreno de areia batida e deixando o pó espalhar-se à sua volta. Maria assustou-se com aquela atitude e também ela parou, confusa.

- O que é que eu já te disse sobre as perguntas?

- Que mal tem? – Ela encolheu os ombros, confundida – Só quero saber mais sobre ti.

- Tu só precisas de saber de mim aquilo que eu te quiser contar. – À noite, naquele sítio, o barulho dos camiões de todos os tamanhos e feitios tornava-se ensurdecedor – Eu ainda não te fiz nenhuma pergunta, pois não? E quem me garante a mim que não estou a ajudar uma criminosa?

A rapariga arregalou os olhos perante uma pergunta tão estapafúrdia, que para ela não tinha qualquer fundamento. A seu ver, qualquer pessoa que olhasse para ela saberia que ela não poderia ser uma criminosa: caminhava sem rumo aparente trazendo apenas uma mochila às costas, o seu aspecto era cuidado e saudável, não tinha maus hábitos que poderiam ser facilmente condenados como fumar ou beber e a extrema facilidade com que acreditava em estranhos demonstravam que ela nada sabia sobre o mundo do crime.

- Não sou nenhuma criminosa, se isso te serve de conforto… - Respondeu, seguindo o seu caminho em direção à pensão, cada vez mais perto.

Jon acompanhou-a de perto, embora não lhe tivesse dirigido nem mais uma palavra. Ele não era um causador de conflitos; respeitava os outros e as suas escolhas, assim como suportava pacientemente os seus feitios. Maria não deveria ser fácil mas ele não pretendia aguenta-la durante muito tempo. Deixá-la-ia em Galveston para que ela fizesse lá o que tinha a fazer e depois não sabia se a voltaria a ver. Mas, na sua visão, isso era o mais interessante de todos os mistérios: saber se um dia nos voltaremos a encontrar com eles e, quem sabe, desvenda-los.
À chegada à pensão, pediram quartos no mesmo andar mas em lados opostos do corredor. Jon já não temia que algum mal lhe acontecesse mas acabou por se começar a sentir responsável pela sua proteção. Indagava constantemente porque estaria ela ali sozinha, por aqueles caminhos obscuros mas não a queria pressionar pois sabia que caso ela quisesse partilhar isso com ele, já o teria feito… ou iria faze-lo, mais tarde.

Na manhã de vinte e oito de março, o tempo estava vigoroso por aqueles lados do Texas. O vento estava forte e as nuvens carregadas e negras, o que ameaçava alguma precipitação. Ao olhar pela janela e ao deparar-se com aquele cenário, Maria optou por colocar uma camisa mais quente por baixo do seu casaco de ganga, de forma a melhor combater o frio. Colocou umas calças de ganga de tom diferente do casaco e calçou as suas botas pelas canelas, que ela jamais dispensaria. Noutra ocasião, teria deixado o cabelo secar ao natural mas com o tempo naquele estado decidiu dar-lhe uma passagem rápida com o secador para que não encarasse o vento com ele tão molhado. Pegou na sua mochila, já organizada depois daquela noite e saiu em direção à receção, onde pagaria aquela noite, que até acabou por ser bem passada: Maria caiu no sono imediatamente assim que se deitou, tal era o seu cansaço.

- Bom dia! – A rececionista que aparentava ser de meia-idade retribui-lhe a boa disposição com um sorriso – Eu quero pagar o quarto 58.

Colocou o seu cartão de crédito em cima do balcão, esperando que a senhora verificasse algo no computador.

- Ms. Solveig, a sua estadia já foi paga juntamente com o quarto 19.

A senhora olhou-a por cima dos seus óculos de ver, segurados com a ponta do nariz. “Jon!”. Maria foi invadida por sentimentos distintos pois não sabia o que pensar acerca da generosidade do rapaz.

- Sabe-me dizer para onde foi o rapaz que pagou as contas? – Perguntou, voltando a guardar o seu cartão de crédito num recanto da sua carteira.

- Vi-o sair e não me lembro de o ver regressar – Imediatamente a senhora dedicou-se a outros assuntos mais importantes, dedicando a sua inteira atenção a uma dezena de papéis dispostos em cima da secretária.

Maria abandonou a pensão sem nunca olhar para trás. Tinha sido uma estadia agradável mas não o suficiente para merecer ser relembrada. Assim que saiu, a fúria do vento afastou o seu cabelo do pescoço, deixando-o despido e sem proteção. Já Jon estava perto da sua mota, aparentemente tentando conserta-la, se tal fosse possível.

- Então? – Quando se aproximou dele, Maria reparou instantaneamente que ele tinha mudado de indumentária: trazia umas calças de ganga, talvez a mesma camisola de manga cava branca e um blusão de cabedal preto, mais acolhedor e sem dúvida muito mais quente que o colete do dia anterior – Arranjaste solução?

- Podia falar-te dos elementos técnicos mas não ias perceber nada! – Ele esfregou as mãos cobertas de óleo num pano branco todo manchado de preto – Mas já está resolvido. Podemos arrancar.

A caixa onde estava guardado o capacete preto voltou a abrir-se e Maria tirou-o lá de dentro, colocando-o na cabeça.

- Tenho de levantar dinheiro… - Sentou-se no pequeno espaço do assento que estava reservado para si, esperando que Jon se juntasse a ela – Tenho de te pagar o que te devo.

Jon tirou de dentro do seu género de porta-bagagem uma pequena garrafa de água, que abriu e despejou para cima das suas mãos, removendo qualquer vestígio de óleo que pudesse restar. Maria mirou-o enquanto ele fazia esse serviço. O seu peito, a única parte visível do seu corpo, escorria de suor apesar daquele tempo frio e ventoso; isso significava que ele estaria ali há algum tempo a consertar a sua mota para que ambos pudessem seguir para o seu destino. Depois de realizar todos os procedimentos de segurança, Jon montou-se na mota e ligou a ignição.

- Pronta? – Perguntou Jon, rodando um pouco a cabeça para conseguir ouvi-la melhor. Iam viajar contra o vento e a comunicação de ambos ficaria condicionada.

- Sim, podemos ir.

Jon arrancou a mota, arrebatando alguns solavancos que fizeram com que Maria tivesse de se apoiar na sua cintura de forma a conseguir segurar-se. O seu braço envolveu-se levemente à sua volta e a sua pequena mão arrepanhou a sua camisola branca. Quando a mota começou a estabilizar, já em plena asfalto, Maria segurou-se aos apoios que tinha de ambos os lados, mantendo assim alguma distância do corpo de Jon.
Chegaram a Galveston meia hora depois, tal como Jon tinha dito que seria no dia anterior. A vila era pacata, com ruas amplas dotadas de casas de ambos os lados – grandes vivendas com jardins imensos decorados conforme variados gostos. De vez em quando, era possível distinguir-se a loja de um ferreiro ou de um sapateiro que trabalhavam por conta própria no meio de todo o emaranhado de casas; o verdadeiro coração da vila ficava no centro, onde havia tudo o que era necessário, segundo lhe tinha dito Jon das poucas vezes que trocaram palavras no decorrer da curta viagem. A mota acabou por parar numa rua igual a tantas outras, distinguindo-se apenas pelo facto de ser mais agitada. Maria saltou imediatamente da mota, pousando o capacete no seu assento.

- Onde estamos? – Perguntou, assim que Jon desceu igualmente da mota.

- Esta é a minha casa!

Apontou para a casa em frente à qual a mota estava estacionada: uma vivenda branca, com as portadas das janelas azuis e um muro de cerca de um metro a cobrir todo o perímetro circundante, destacando-se das outras por esse mesmo facto. O seu jardim mal cuidado estava mais protegido em relação aos outros, que não tinham qualquer vedação. Maria ficou estupefacta pelo simples facto de Jon aparentar ser tão humilde e viver numa casa daquela magnitude.

- É gira! – Olhou para ele, confusa – Mas eu não vou ficar em tua casa… Não há nenhuma pensão aqui em Galveston onde possa ficar nos próximos dias?

Jon despiu o casaco pois ali, no meio da vila, o vento não era tão intenso. Deixou à mostra os seus braços onde se notavam os seus músculos bem definidos e algumas veias salientes que Maria não podia considerar mais sexy.

- Primeiro, acho que me deves algumas respostas! – Maria ia interrompe-lo mas o rapaz levantou o braço em sinal de objeção – Segundo, não vais ficar numa pensão por tempo indefinido! – Tirou de dentro da sua caixa a roupa suja do dia anterior, acolhendo-a nos seus braços. No início do dia não lhe tinha passado pela cabeça oferecer-lhe estadia em sua casa mas durante a viagem pensou que talvez essa seria uma boa opção. Ele não gostava desse seu lado protetor mas lá estava ele a dar sinais – Acho que já te dei mais do que provas de que podes confiar em mim. Para além disso não me tomes por parvo, Maria. Consigo ver confusão e desespero a léguas… Tu claramente não sabes o que fazer nem tão pouco sabes como começar. Talvez eu possa ajudar-te.

Ambos os olhares cruzaram-se naquele instante. Maria mostrava alguma indecisão, alguma renitência em confiar naquele estranho; estranho que já lhe tinha dado provas de poder ser confiável. Já Jon ansiava para que a rapariga aceitasse o seu convite indireto de permanecer em sua casa enquanto estivesse em Galveston. Sabia que alguma coisa de errado se passava com ela e queria ajuda-la acima de tudo, queria saber quem ela era, de onde vinha e o que tenciona fazer por ali.

- E os teus pais?

Jon encolheu os ombros e falou com pesar, como se aquelas palavras já tivessem sido repetidas vezes e vezes sem conta e, ainda assim, continuassem a ser tão dolorosas como da primeira vez.

- Os meus pais morreram…

Maria foi apanhada de surpresa com a revelação. Desejava que ele continuasse e lhe explicasse o que aconteceu com eles mas Jon não o fez. Ao invés, abriu o portão que dividia a rua do seu jardim e entrou em quintal adentro sem olhar para trás uma única vez que fosse.
Maria ainda permaneceu do lado de fora durante uns instantes, a ponderar o que deveria fazer. Sabia que Anna jamais encararia com bons olhos o facto de a sua protegida ter entrado assim em casa de estranhos e o peso na consciência que poderia advir disso era o que mais a fazia hesitar. Mas depois daquela confissão de Jon, aliado ao facto de ele parecer docemente inofensivo, fizeram nascer em Maria uma vontade mais forte de o conhecer melhor, de conhecer a sua história; afinal, eles eram mais parecidos do que aparentavam ser. E Jon poderia ser o passaporte que a levaria a cumprir o que realmente queria de Galveston: encontrar os seus pais biológicos e acabar com a sofreguidão de não saber por que motivo eles a deixaram à mercê da boa vontade de outras pessoas.

Depois de já estar instalada nos aposentos de Jon, Maria vestiu uma roupa mais prática e mais aconchegante para poder ficar mais à vontade. Foi sentar-se na sala de estar do grande salão principal, onde Jon também estava, a assistir a corridas de motas pela televisão. A grande lareira estava acesa, libertando um cheiro não muito agradável mas um calor que muito convinha naquela altura tendo em conta que o tempo tinha arrefecido e aquela era a casa mais fria onde Maria já tinha estado. Cobriu-se com um cobertor que aguardava por si no sofá e olhou à sua volta, indagando o que faria o rapaz para viver numa casa daquelas, tão luxuosa e certamente mais cara ainda.

- Tens algum trabalho? – Questionou, observando os detalhes presentes no teto do salão.

- Não… - Ele parou a emissão da televisão e sentou-se no sofá como que pressentindo que Maria estava com disposição para conversar – Seria muito mau dizer que vivo às custas da herança que os meus pais me deixaram?

Maria fitou-o durante uns instantes, sem saber o que dizer.

- Bem… - Ela riu-se, embaraçada – Mas não trabalhas porque não queres ou porque não arranjas trabalho?

- Nunca tentei encontrar um emprego! – Encolheu os ombros, dando a conhecer a Maria a verdade nua e crua – Nunca achei que fosse necessário… Eu tenho todo o dinheiro de que preciso.

A sinceridade do rapaz não a afetava, muito pelo contrário; ela admirava a sua capacidade de dizer as coisas mesmo sabendo que isso poderia magoar as pessoas. Mas Maria sabia que a verdade tinha de ser dita, custasse aceita-la ou não.
“Direto e honesto”, pensou, agradada com o que ele tinha dado a conhecer até agora.

- Então os teus pais deviam ser muito ricos, não? – Perguntou, procurando não parecer demasiado curiosa mas em vão.

- Sim, o meu pai era empreiteiro e a minha mãe médica veterinária numa clínica aqui perto… - Jon deixou de fitar a sua recém inquilina temporária e puxou para si o cobertor que estava dobrado aos seus pés – Mas deixemos de falar de mim!

Maria riu-se, atrapalhada com o rumo que a conversa estava a tomar. Rir era o seu escape quando as coisas não iam pelo caminho por ela pretendido; tinha sido assim desde criança e duvidava que algum dia fosse mudar.

- O que queres saber sobre mim?

- Eu não quero saber nada sobre ti… - O rapaz ajeitou-se no sofá, dando indícios de ter começado a sentir algum mal-estar com a sua posição – Quero saber o que te traz aqui!

Mais uma vez, Maria gargalhou.

- O quê? – Perguntou ele, sentindo-se confuso com o seu comportamento – Estou a pedir alguma coisa de outro mundo?

- Não, não… - Sempre com um sorriso tonto nos lábios que ela não conseguia evitar em situações do género, Maria prosseguiu – É só que não me sinto muito à vontade a falar sobre a minha vida.

A pressão começava a notar-se no seu comportamento: os seus dedos pequenos e cheios começaram a enrolar-se uns nos outros e os seus olhos deixaram de procurar o olhar de Jon. Ela sabia que lhe devia uma explicação; Jon tinha-a acolhido em sua casa sem a conhecer, sem pedir nada em troca e já tinha referido alguns detalhes da sua vida. Poucos, mas importantes. Importantes na forma em que demonstraram o tipo de pessoa que ele podia ser: alguém frágil por ter aprendido desde muito cedo a lidar com a mágoa e a dor e que usava uma máscara no exterior talvez para dar uma ideia de força e vontade de viver quando na verdade não a tinha.
Nesse aspecto, eles não podiam ser mais iguais.
Mas Maria indagava que sofrimento seria maior: nunca ter conhecido os seus verdadeiros pais e saber que prosseguiram a sua vida sem nunca se terem importado com ela ou ter convivido com os seus pais desde o início e certo dia deparar-se com a sua ausência para sempre?

- Maria… - A voz melodiosa do rapaz fe-la despertar – Não precisas de me contar o que quer que seja se não tiveres preparada.

Um dlim dlão forte e compacto invadiu a casa, fazendo eco. Jon levantou-se imediatamente mas pela sua expressão parecia estar surpreendido com o súbito toque de campainha. Foi até à porta, pisando o chão de mármore com pesar e abriu-a, quase escancarando-a, encarando a pessoa que estava do lado de fora, que Maria logo percebeu, através da voz, tratar-se de um indivíduo do sexo feminino.

- Podemos falar? – Perguntou ela, quase num sussurro.

Jon espreitou para Maria, que se encontrava exatamente no mesmo sítio, curiosa com a situação. Não fazia intenções de abandonar a sala mas o olhar implorante do rapaz fez com que ela se levantasse com o cobertor a cobrir-lhe os ombros e subisse a escadaria em forma de caracol para deixa-los a conversar à vontade.
Entrou na primeira porta que avistou pois o corredor, demasiado estreito e coberto de quadros, era tão assustador que ela não aguentaria permanecer ali tanto tempo. Procurou o interruptor da luz e ao acende-la desejou nunca o ter feito; se o corredor era assustador, perguntava-se o que seria aquilo. O quarto, com proporções exorbitantes, era todo branco. No meio da divisão, algumas coisas empilhadas em forma de pirâmide estavam cobertas por um lençol branco comprido, que arrastava pelo chão. Ao fundo, um armário imponente de madeira escura jazia, fechado, dando a ideia de não ser aberto há séculos. Maria percebeu, pela disposição das coisas e pelo cheiro a mofo que inundava o ar, que aquele quarto não era habitado fazia muito tempo; não fazia ideia de há quanto tempo os pais de Jon tinham morrido mas calculava que ninguém lá entrasse desde então. E o mais intimidante de tudo era que portas iguais àquela por onde tinha entrado, existiam ao longo de todo o corredor, numa extensão de aproximadamente vinte metros.
Maria deu meia volta, desejando não permanecer nem mais um segundo ali mas as vozes cada vez mais altas lá debaixo fizeram-na recuar na sua decisão de abandonar o quarto. Não queria ouvir o que ambos estavam a dizer mas com aquele barulho tal seria impossível.

- Eu não acredito que tu fizeste isso!!! – A voz estridente da rapariga ecoava por todos os lados e o barulho dos seus sapatos de salto alto ressoava quando eles entravam em contato com o chão – O Lopez não vai perdoar. – A forma como pronunciou Lopez, com sotaque perfeitamente latino fez Maria acreditar que a rapariga poderia ser américo-latina – Tu vais ter de arranjar esse dinheiro, Jon.

- Eu vou arranja-lo, ok? – Jon falou de forma pausada e apaziguadora – Eu amanhã falo com o Lopez!

- Ai sim? – Ela riu-se com menosprezo – E o que pretendes dizer-lhe, cowboy?

- April é melhor saíres.

Aquele ultimato deu a Maria a impressão de que teria acalmado os ânimos. Se não o fez, então certamente que a intimidou pois não mais se ouviu a sua voz, apenas o som da porta a fechar-se abruptamente. Assim que percebeu que ela tinha saído, apressou-se a sair daquele quarto no mínimo sinistro. Enquanto descia as escadas, remoía na sua cabeça quem seria Lopez e quem seria aquela tal de April, que ali tinha ido completamente fora de si, muito chateada com algo que Jon teria feito. Aquilo remexia na sua cabeça mas não queria meter-se na vida privada de Jon; o que ele fazia só a ele lhe dizia respeito. Ela era apenas uma hóspede… “temporária”, pensou.

- Desculpa esta confusão – Desculpou-se, já com a televisão ligada à sua frente – Era apenas uma amiga.

Maria duvidava piamente disso. Sabia distinguir uma briga de amigos de uma briga de comprometidos… ou talvez ex. comprometidos. A forma como ela gritava denotava uma certa fúria que não era de todo típica de apenas amigos.

- Estava chateada ela, ahn?

- É… - Ele voltou a deitar-se no sofá, recolhendo-se no interior do cobertor – Mas ela é boa pessoa.

Maria sentou-se no lugar onde tinha estado até April chegar e obriga-la a esconder-se para que os dois pudessem ter mais privacidade. Tinha uma vontade imensa de questiona-lo acerca de Lopez mas sabia como isso soaria rude e intrometido. Optou então por questiona-lo acerca de outra coisa que a inquietava:

- Quando estive lá em cima... – Maria hesitou e só continuou quando Jon parou a emissão e a encarou – Entrei num dos quartos…

- Ah os quartos! – Jon sorriu, como se tal descoberta fosse óbvia – Não entro lá desde que os meus pais morreram… Toda aquela parte de cima é inabitada, não gosto de lá ir. – “Causa-me arrepios”, pensou, mas não o disse.

- Então e onde dormes?

- Aqui!

Maria arregalou os olhos.

- E eu, onde durmo?

- Aqui! – Respondeu ele, com um sorriso gracioso a surgir-lhe por entre os lábios.